Para um autocarro que fazia um trajecto mínimo, dentro do bairro, era mesmo pequeno. A vizinhança envelhecida descia a pé para o café e voltavam de boleia ainda com o assunto básico de mesa de café. Enfim, precisava de chegar a casa e a chuva tornava o frete de carregar os sacos de compras ainda mais pesado. Chegada à paragem final, saiu por último, passando por baixo dos chapéus-de-chuva do bando unido. Mal se molhou. Cheirava a jantar no patamar, hoje tinha companhia. Enfiou as chaves na fechadura silenciosamente e abriu a porta empurrando-a com a anca, trazendo as compras para dentro de uma só vez, sem um único ruído. Saltou para dentro da cozinha para a assustar:
– Já te vi!… Já que estás aí, passa-me o tomilho.
Com o ar miserável de quem viu o seu prazer estragado, ali ficou, à espera de algum tipo de desculpa pela falta de entusiasmo.
– Se?!
– Se, nada! Mexe a peida. – Estava de costas, mostrava a face em semi perfil, mas conseguia-se ver o sorriso provocador nas rugas.
Passando-lhe o frasco – Mas vais assar o quê?- espreitando por cima do ombro dela.
– Vou fazer comida a sério, já não deves reconhecer sequer pelo nome…
– Eu trato bem de mim, não te preocupes. – encostou-se à bancada, de lado para ela, a olhar para os ténis molhados – Não é que estejas cá para ver.
Cortando freneticamente as cebolas em quartos e as cenouras em tiras, calou-se e prosseguiu.
Os cheiros, a carne, os temperos, lembravam-na de casa, talvez isso chegasse para manter a calma. Abandonou a cozinha e aquela que se tornava na mais pura estranha com quem dormia. Vasculhou o correio e surpreendeu-se ao ver um nome familiar.
– Viste o que vinha no correio?!
– Vi! Tive de olhar duas vezes, não queria acreditar!… Parece que, afinal, sempre se lembra de ti.
– Hm, pois…
– Devias ligar. – limpando as mãos e encontrando-a no corredor – Ele tem o teu número, sequer?
– Não… Senão, tinha ligado. Não é muito dado a correspondência…
– Pois, realmente não sei porque perguntei. Vens-te embora, não te despedes, não dizes nada… é óbvio que… – engoliu em seco – Olha, daqui a mais ou menos meia hora está feito, vou só tomar duche.
– Ok.
– Queres vir?
– Vou pôr a mesa.
Hesitou a caminho do duche, já despida – Ao menos não foi por e-mail… Ou pior! – e fechou a porta atrás dela.
‘Ou pior… És engraçada, chegas e podes atirar as merdas para o ar… é preciso ter cara.’, pensou.
Puxou uma das cadeiras da sala, sentou-se e sentou o telefone no colo. Ligou-lhe. Precisava de ouvir a voz dele, para a tirar, ainda que momentaneamente, do vazio a que se atirara, no isolamento.
– Então?! Adormeceste aí? – gritou-lhe da porta da casa-de-banho, de onde a conseguia ver, com um ar pesado e de olhos fechados. – Vai ver a carne, depressa!
Não dormia, por assim dizer. Tinha a cabeça à roda. As ideias fugiam do lugar e alguma claridade atirava as convicções para o esquecimento.
– Depressa!
– Sim, já ouvi. Estou ir!
– Ok, mas mais depressa! Antes que queime!!
– Não comeces. Não te armes em mamã. Fica-te mal.
– Vê se o tabuleiro está seco.
– Se eu te chamar nomes tu ouves ou vais mandar-me fazer a cama? – gritou da cozinha.
Enrolou o cabelo na toalha, vestiu o robe, entrou na cozinha e desligou o lume, abrindo logo a porta do fogão, espetando um garfo na carne.
– Ainda se pode comer. – Desenrolou a toalha, deixando cair os cabelos castanhos nos ombros, secando-os calmamente, das pontas para cima, sem trocar olhares – Sabes, se deixasses de dizer tanta merda e te dedicasses a crescer um bocado, talvez não precisasses de mim para te sentires mal, nem para cuidar de ti. Mas, como sempre, a decisão é tua. Amanhã volto para o meu estúdio, tens o que precisas para os próximos dias já tudo pronto. Agora vou-me sentar à mesa a comer. Traz o vinho. – Pegou no jantar e avançou para a sala, deixando um rasto de desdém à sua passagem.
A última vez que tinha comido algo cozinhado num forno, estava em Lisboa, num jantar de despedida. Ele não foi a esse jantar, não por esquecimento, mas por despeito. O vinho não respirou, despejou-o gulosamente nos copos.
– Liguei-lhe.
– hm… e que tal? – Bebendo.
– Está tudo óptimo… Tudo diferente, na verdade!…
– Isso quer dizer o quê?
– É estranho, sei lá… Falar de como estão as coisas… Da última vez que falei com ele eu tinha acabado de sair da faculdade, ele já tinha saído há dois anos, sempre a trabalhar, sempre nas coisas mais maradas, com projectos assim e assado que nunca viram a luz do dia… De repente desapareceu e era gajo de negócios da China, ninguém lhe punha a vista em cima, sempre de um lado para o outro em coisas supostamente importantes… O que mais me custou foram as vezes que fez questão de saber alguma coisa, os convites para sair, as mensagens de parabéns, que não aconteceram, simplesmente! – parou para beber, recuperando o fôlego.
– E? Do que falaram?
– De muita coisa, mesmo. – fitou-a através do copo – Falámos do que andava a fazer… Imagina – riu-se – demitiu-se!
– Mas afinal que fazia ele?
– Epá, tanto quanto percebi, era um trabalho cheio de promessas, e tal…
– Ah, isso é bom para currículo… “Último posto de trabalho: algo cheio de promessas, lda”! Ahah!
– Mas espera! – encheu de novo os copos – depois de todo o tempo e, segundo ele, esforço investidos, responsável por um departamento, lançado no trabalho e na carreira!
– Isso lembra-me alguém…
– Quem é que se atira para o desemprego, nos dias de hoje, sem garantias sequer de nada? Quer dizer, pelo que me contou, tudo corria bem, promovido e a gerir coisas, parece coisas de gente grande…
– E o que anda agora a fazer?
– Anda em projectos.
– Ah! – exclamou sem surpresa – Que projectos? – desta vez encheu ela os copos.
– Projectos dele, disse-me que tinha projectos em stand-by, ia retomar alguns. Entretanto tinha umas cenas novas a acontecer… Ele nunca revela muito, sabes como é. De certeza que é algo com escrita ou foto…
– Nunca vi nada dele, por acaso…
– Tenho algumas coisas que fizemos em conjunto, já te mostro.
– Sim. Gostava de ver – olhou-a, finalmente, nos olhos. Para quem está habituado a ler pessoas, não é difícil ver nos olhos que não traem, a culpa. Foi instantânea, a leitura. O vinho tornou o perdão mais volátil.
– Está ali no meio das minhas coisas, eu trago para aqui. – levantou-se com o ânimo que não tinha antes de se estabelecerem tréguas. Vasculhou na bancada junto à janela, do outro lado da sala de jantar.
– E ele disse-te porque decidiu deixar o emprego?
– Sim! – regressou à mesa com algumas folhas escrevinhadas, poemas traduzidos e alguns desenhos a caneta. – Sentia-se doente, exausto, sem propósito. Disse mesmo que sentia a alma a mirrar, ou melhor ainda, “a pipoca a fritar, a queimar”, citando-o… enfim, não havia ninguém acima dele que levasse uma vida que ele invejasse, sequer. “Não há dinheiro que pague o meu bem estar. Não há realização sem fazer aquilo que faço com amor. “O meu tempo é precioso e vou usar todos os meios para me exprimir. Isso é, para mim, felicidade” disse ele, mais palavra menos palavra…
– Uau!
– Uhm… sim…
– Uhm, sim, o quê?
– Estou a pensar fazer o mesmo. Dinheiro, de alguma forma, é mais perda que ganho. Quero algo que não posso adquirir. Antes voltar do que continuar.
– Antes voltar do que continuar?
– O mesmo não se aplica a nós.