Passaram tantos anos nestas últimas semanas. E o tempo feriu e o tempo sarou e o tempo não cura. O tempo limpou a cidade num maremoto discreto e pintou-a de um vermelho gélido.
-O que aconteceu ao ódio?- perguntam-me
– O ódio foi parar a um manicómio. Está lá preso numa camisa-de-forças, a injecções e
calmantes. – Respondo, com os olhos colados à janela.
Não desenvolvi a explicação. Passaram tantos anos, entretanto, de facto. E o ódio ainda tenta fugir, de vez em quando, mesmo sabendo que é em vão e que as amarras e as drogas o prendem à realidade do nunca.
Aquela paulada de nostalgia recorda-me aqueles tempos. Eu escalava um muro de pedra para escapar ao maremoto. Chego a sentir as pontas dos dedos arderem novamente, no esforço para não escorregarem das falhas da pedra a que agarrava a minha vida. Olhava para baixo num medo frio, os ossos doridos, o sangue a pulsar frenético e vivia para não morrer. Escalei, sem olhar para trás. Quando cheguei ao cume, caí de um cansaço limite, acordei horas depois.
Tudo o resto é vago. É água e pedra, não sei.
Não mais olhei para trás, fiz-me de pedra e bebi a água de um trago. E a água cresceu em novo maremoto em mim. Desfiz-me num orgulho tal que quase me inflamava a vista. Toda eu me desfazia em água, num renascer triunfal.
Não é que nada esteja certo. Mas também o não estava naquele dia e eu escalei. E escalarei até ao meu novo cume. Quanto ao ódio cuidarei dele como a um gato felpudo que cintila nos meus olhos. Não culpo o tempo que não sara como esperam que faça. Ele nutre. É tudo o que espero dele.
PGM C