– Não gosto muito de invasões barulhentas – disse, num tom de puro fastio -, já o disse antes e volto a repetir com a mesma veemência.
– De onde veio essa? – pergunta, recostada na cadeira, sonolenta do longo silêncio decorrido, quebrado pela minha observação.
Expliquei-me e ela ouviu… pelo menos parcialmente, apenas observando o movimento dos meus lábios. ‘Cada palavra parece decorada, ele não vacila’, pensa ela, ‘aquilo deve ter estado a ruminar ali dentro, à espera de sair’. Falava sem interrupções e projectava o vago olhar para a cabine telefónica, desenrolando o monocórdico monólogo.
‘Grande monólogo que para ali vai!… É suposto eu perceber ou ele acha que faz sentido? Há-de fazer algum, lá no meio da palha…’
Encarava-me, a expressão era de total passividade, ausente, expressão de alguém que desligou o cérebro para recalibrar.
– Mas vê se percebes o que te digo, é mesmo como o episódio da rainha feiticeira e os Templários.
‘Epá, espera lá que vem aí da boa!’ pulou na cadeira e inclinou-se na mesa para ouvir o resto.
– Hm, pois… Como… Como?
– Então – agora focando-me nela -, houve muitas guerras nos episódios das Cruzadas, e eles simplesmente invadiam os territórios onde sua Divindade ainda não era sabida e proclamavam as terras. O que me espanta nestes sujeitos é atitudezinha de criança possessiva, sabes, como quando os nossos putos berram e se atiram ao chão e não nos deixam usar a sanita porque de repente acham que é só deles, embora usem fraldas, ou como quando se apoderam do comando da tv, ou das chaves do carro. Eles só querem o que não é deles. É o mesmo com os Templários e a avidez da Cruzadas.
– Hm, pois – sorvendo o resto do café.
– Tanto invadiram que um dia chegaram à terra da tal feiticeira – interrompeu-me – Espera! Mas qual feiticeira? Não me lembro de nada sobre feiticeiras nas Cruzadas… – Esta acho que era uma rainha deusa da Síria, ou assim… É bem capaz, aquela gente não brinca. Enfim – continuei -, eles chegaram lá, acamparam, trotaram até à dita feiticeira e foi logo “Saia daí que isto agora é nosso”. Como disse, houve muitas guerras, mas com esta não tinham hipótese, foram vaporizados, mas não sem antes verem um bocado das profundezas do Inferno. Quando é assim, esquece lá o Cavaleiro Templário e a supremacia da palavra do senhor, quem pôde escapar não parou de correr. É assim que me sinto quando se intrometem no meu sossego.
Ficou estúpida a fitar-me com dúvida e desatou a rir.
– Ha! Tu és demais!
– Então porquê? – franzindo face à condescendência – Com essa figura triste sabes quem me fazes lembrar?
– A tua mãe? – disse, já azeda com a conversa.
Não reagi ao ataque directo e prossegui.
– Não. Fazes-me lembrar aquela criatura Macbeth. Onde quer que fosse envenenava tudo e todos, caso não tivessem já sido envenenados.
– Mas tu sabes do que falas?
Silenciei-a com o gesto de um dedo.
– Essa mesma Macbeth, na sua vil perfídia, era bem capaz de me dar uma sopa envenenada e roer-se toda de antecipação até dar a primeira colherada, e, caso estivesse a demorar muito a lá chegar dir-me-ia algo como “Não comes a sopa? Está a ficar fria”. Se oferecesse resistência então dir-me-ia ” É que já está envenenada, mais vale agora enquanto está quente”. É essa a mesquinhice que trazes sempre contigo. A minha mãe sabe cozinhar.
– Acaba lá de fumar e vai trabalhar, é disso que estás a precisar.