As crises de inspiração, por incrível que possa parecer, também podem ser um ponto de partida para fazer efectivamente qualquer coisa, nem que seja disparate. As crises de inspiração e café. Ou um cházinho, não vá o café fazer os nervos tecê-las e surgir uma produção inquieta. Era chato!
Isto, porque uma inspiração nervosa não é um bom presságio para uma caneta sedenta de escrita ou para um espírito danadinho para mudar o mundo. Ou para divagar sobre uma hipotética regra de uso de uma liberdade em bruto (tenho dado por mim a pensar estupidamente nisso). O problema é que demasiada informação e uma considerável dose de estupidez só podem espoletar um resultado perigosamente absurdo.
Existindo uma regra que nos dissesse para termos liberdade em bruto, o mundo seria caótico. Seria uma imposição, deixando assim de ser liberdade. Estaríamos condenados a ser livres, livres por obrigação, e enquanto uns abusariam disso, outros rebelar-se-iam, só pelo simples (ou gravemente complexo, dependendo da perspectiva) facto de ser uma regra.
Olha agora, só sou absurdamente livre se eu quiser!
Os rebeldes contra a liberdade em bruto estariam, portanto, a exercer livremente o seu direito a decliná-la, a contestá-la. Contraditório, não é? É aqui que esta ideia revela a sua índole traiçoeira e isto começa a ser uma grande confusão. Uma perspectiva: a liberdade em bruto dar-nos-ia jeito, subsidiariamente, porque às vezes queremos simplesmente disparatar sem sermos reprimidos. Sem ouvir o grilo falante. É que acontece sentirmo-nos a transbordar de vontades, revoltas e ideias e não termos doseador; é querer ousar, ver, analisar e ter resposta para tudo ao mesmo tempo e, mesmo antes de sabermos por onde começar, já os alarmes da contenção (similares aos olhares das nossas mães quando éramos pequenos e estávamos a tramar alguma) estão a disparar automaticamente, mascarados de uma moral duvidosa, mais conhecida pelo seu ilustre pseudónimo: politicamente correcto (o olhar da mãe subentendendo um “nem te atrevas”, quando no fundo nos estava a achar piada, topam?). É mais ou menos como quando, também em pequenos, dizíamos a uma velhota “és velha”, e os nossos pais nos repreendiam (a rir) “então, isso não se diz!”, quando é do conhecimento geral que uma pessoa velha é velha. A coexistência politicamente correcta é, portanto, mais ou menos como o Carnaval.
A hipotética questão da liberdade em bruto, apesar de falível e até contraditória, não é tão superficial quanto parece, e tentar explicá-la simples, concisa e até inocentemente torna-se mais fácil (as histórias da nossa infância são bodes expiatórios perfeitos!), mas há-de haver sempre uma ponta solta.
A liberdade em bruto dar-nos-ia a rolha que se enfiaria na boca do politicamente correcto. Cada um diz e faz o que quer e os outros que se lixem (isto é a teoria), mas se o pudéssemos fazer sem, pelo menos uma vez na vida, pensarmos como pessoas que vivem em sociedade, e esquecer que existe a necessidade de ter modos (isto é a prática, e nada tem em comum com o politicamente correcto), não era tentador? Só para ver como era?
Quero exercer livremente o direito ao mau feitio. Quero, por exemplo, mandar as simpatias matinais, pedidos de desculpa e lamentos para um determinado sítio (nunca lá fui, mas sei que existe). A liberdade em bruto permitir-me-ia isso, pois as rolhas estariam enfiadas no sítio certo.
– Bom diaaa! .
Por exemplo. É que o “bom dia” naquele trautear irritantemente automático, forçado e chato logo de manhã funciona como o “bom resto de fim-de-semana!” num domingo já à tardinha, em plena mini-depressão-pré-Segunda-feira. Não é saudável.
– Desculpa lá, então.
Outra de mandar à fava. O “desculpa” só porque é bonito, só para ceifar o mau humor alheio, que está a incomodar e a cair mal. Nesta situação, a liberdade em bruto deixar-me-ia ripostar, sem qualquer problema, um “olha, vai pastar e leva as desculpas contigo!” assim, simplesmente, sem consequentes remorsos (estou a ver os olhos da minha mãe, e estão a censurar-me, a chamar-me malcriada).
Isto é demasiada informação para o cérebro processar e organizar, e eu sou um zero à esquerda (e à direita, e em todas as direcções) no que diz respeito à organização. É também por isto que as crises de inspiração acontecem, até o cérebro é politicamente (in)correcto, está demasiado formatado.
A liberdade em bruto é então utópica, respira apenas o oxigénio que a imaginação e a frustração lhe fornecem esporadicamente, e manifesta-se somente em estados de estupor nervosos.
– Lamento, a sério.
– Deixa-me!
– Levanta mas é esse cu e vai beber um café, que enquanto vais e vens, não chateias.
Definitivamente, o chá não muda nada.
Pequena Maldita F