Não há nada a não ser dor. As mãos partidas, as palavras rasgadas. Não há nada real. Tudo é mesquinho e egoísta. Tudo é cobardia e desengano. Ilusão em tudo o que se vê. Nada é real. Para que fingem que é?
Os adultos brincam mais do que as crianças. São os adultos que têm o mundo mais irreal. E ele vai alterando consoante as nossas vontades e desejos. Mas criam, eles criam qualquer coisa que saia do mundo real. Ou pelo menos da realidade de até então. É do sonho que nasce a criação.
Assim nasceu Cristal. Cristal era a suprema criação do século XXV. A obra-prima dos humanos. Cristal era um robô, com a aparência de uma bela mulher. De formas perfeitas e cabelos longos, de um castanho penetrante e os olhos mais verdes que uma esmeralda e tão brilhantes como…um cristal.
Cristal tinha um Q.I elevado e dominava a matemática como ninguém. As ciências exactas eram feitas da mesma fibra que ela. Tudo o que era subjectivo (eufemismo para ilusão) era eliminado aos seus olhos, que só viam a exactidão da realidade. Ela era o 1º robô de aparência e pensamento humano e era como uma filha para qualquer cientista. Era como se ela representasse a vitória sobre a procriação que nos havia subjugado até então.
Muitos eram os admiradores da rapariga. Muitos eram os corações partidos. Nunca o dela. Faziam-lhe juras de amor eterno, prometiam-lhe a lua, faziam-lhe serenatas à janela. Tudo em vão. Aziados pelo amargo gosto da rejeição, diziam que ela era um fracasso, que não era como os humanos, que não tinha coração. E nesse momento, escorria-lhe uma lágrima pelo delicado rosto. Caía-lhe uma lágrima, porque era mentira.
Como poderia? O mundo estava obcecado com aquela criação, ansiosos por perceber como alguém que chora, não ama. Haveria alma naquela máquina? Os cientistas agonizavam em insónias, indagando o que poderia ter corrido mal. Foi um desespero fulminante na vida mundial.
Cristal sabia as respostas. Bastava que lhe perguntassem se tinha coração (como muitos admiradores o fizeram) para a ouvir dizer que sim, claro que tinha, afinal um corpo sem coração não se mantém vivo, é preciso um coração para bombear o sangue. Mas quem ouvia esta resposta, prontamente assumia que ela não o tinha, para além de um órgão.
-Nunca amaste?-perguntaram-lhe por vezes.
E ela sorria, com o seu ar majestático de deusa soberana:
-Nem eu, nem tu. O amor não existe.
-Claro que existe! – Respondiam-lhe, sempre repletos de indignação.
E Cristal, pacientemente, explicava:
– Aquilo a que vocês chamam amor não se vê, não se sente na pele, não tem cheiro. Não merece uma letra maiúscula. É só mais uma ilusão vossa para vestir de brilhantes a procriação. É assim que vocês falam, não é? Vês? O amor é igual a esta metáfora, ou melhor, é pior, porque a metáfora existe, o que não existe é a ideia que ela representa.
– Não é verdade!- ouviu, Cristal, dos rapazes.
– Diz-me, quantas vezes achaste que amavas alguém? Eu respondo, várias.- Argumentou a bela rapariga.
– Bem…sim mas… eram enganos. Ou não eram fortes como o último – Explicavam-se prontamente.
– Não percas o teu tempo. O que dizes e o amor é uma perda de tempo.- Disse, carinhosamente, a menina.
Por fim, aquelas frases percorreram o mundo, na boca dos homens, na boca das mulheres, na boca de adultos e crianças. Os casais começaram a discutir, a querer provas. Onde estava o amor afinal? Será que ela tinha razão, pensavam. As dúvidas matavam, um a um todos os casais, os laços que os uniam quebravam e uma dor infinita percorria aquela verdade dolorosa.
Cristal foi a obra-prima do homem. Ela mudou a lei da procriação e, mais que isso, abriu pela 1ª vez os olhos alucinados de todos os humanos. Com a procriação derrotada, aquela ilusão já não fazia sentido. E, pela 1ª vez os cientistas desejaram ter falhado a sua experiência…
PGM C